O nome Kleber Geraldo Lelis Simões pode não ser conhecido, mas o apelido KL Jay é reconhecido dentro e fora do Brasil como o DJ do maior e mais influente grupo de rap fundado neste país, os Racionais MC´s.
Dono de alguns dos beats mais lendários da música brasileira, demonstrando no uso de sample um profundo conhecimento da música negra produzida em diversas partes do mundo, KL Jay celebra 35 anos de carreira com a segunda edição do Festival Sample, evento que também relembra de forma comemorativa os 50 anos da festa considerada o marco-zero do Hip-Hop, onde DJ Kool Herc, no dia 11 de agosto de 1973, juntou um par de vinis e um mixer para colocar a pedra seminal do que viria a ser a arte mítica que consagraria KL Jay.
De corrente no pescoço e camiseta com o rosto emblemático do ativista Malcolm X, KL chega para a entrevista um pouco depois de Leandra Silva, jornalista e cocuradora do Festival Sample. Sem pressa, a festa em homenagem aos profissionais da discotecagem chega após dois anos de sua edição virtual. “A gente esperou ser aprovado e às vezes demora mesmo para ficar bem feito, tanto é que foi aprovado. A gente também não tem intenção de fazer todo ano, entendeu? Fazemos no tempo certo com a logística e a estrutura certa para tudo ficar como imaginamos”, conta.
A postura, inicialmente contida, logo se desfaz quando o assunto sobre música se desenvolve. Como pesquisador e ouvinte voraz de música, KL Jay escolheu um recorte exclusivo de capas e contracapas de 38 álbuns que deram origem a samples registrados em faixas de outros 38 LPs essenciais para a história do rap. 32 LPs selecionados a dedo do acervo pessoal de mais de 20 mil discos da coleção do músico. “Cara, tem gente que conhece mais que eu de música, bem, bem mais. Eu procurei equilibrar as músicas que fizeram mais sucesso com as que não fizeram tanto sucesso, mas que são tão boas quanto. Tem música que explodiu no mundo inteiro, tem música que explodiu mais no alternativo. Já o Kamau, ele puxou mais pro underground mesmo, entendeu? Então é legal que os gostos diferentes dos curadores estejam presentes”, conta KL se referindo a Kamau e DJ Will, que fizeram um recorte para a exposição de 44 álbuns, 24 destacados por Kamau e 20 por DJ Will. .
Desde sua aparição explosiva em 1990, no EP “Holocausto Urbano“, onde usaram sample de “The Payback”, “Mind Power” e “Funky Drummer” do lendário James Brown, que os Racionais MCs mostravam a potência possível da união de reverência e criatividade. Mais raro no rap nacional contemporâneo, o uso de sample, na visão do ritmista do quarteto Racional ficou em segundo plano por conta dos direitos autorais. “Apesar disso, muitos artistas continuam trabalhando com sample. O próprio Nas lançou disco esses dias com o Hit-Boy e muita coisa é sampleada, então o sample continua, mas existe uma demanda de artistas novos, beat com arranjo no teclado. Eu não gosto muito porque muita coisa não tem musicalidade. Não é todo mundo que é o Pharrell, o Kanye West, que coloca musicalidade na música”, aponta KL.
Muitos deles querem ganhar o dinheiro, né? Querem falar essas ideias aí que você está vendo e encher o cofre. Música está lá atrás, em terceiro ou quarto lugar. Racionais, pra fazer uma música demora 1 ano, para fazer um disco demora 10, tem essa preocupação com o contexto, para tudo combinar. Sample, batida, voz e letra tem que ser uma coisa só. Muita gente não está preocupada com isso não – KL Jay
Admirador de DJs que têm relação íntima com instrumentos musicais como DJ Premier (Gang Starr), Dr Dre e Pharrell Williams, para KL, faz muita diferença essa relação na forma como o artista concebe sua arte dentro do rap. Musicalidade é uma palavra que ele usa várias vezes na entrevista e não por acaso. Com bem menos recursos tecnológicos, Kléber e Edi Rock faziam a festa em bailes black no fim dos anos 80 no que seria o embrião do que viria a se tornar os Racionais MCs. “Não é só samplear, colocar batida. Às vezes você busca isso ouvindo, só. Eu mesmo não sei, acho chato, complicado, mas tenho noção de tom, de riff, se está combinando uma música com a outra. Isso você se autoeduca. Racionais é a mesma coisa. O Blue, o Mano, o Edi têm ouvidos para a música. Mas pessoal hoje não busca e as músicas explodem, né? Fazer o quê? E tá tudo bem também”, reflete um tanto resignado.
Claro, KL Jay, fã nato de música, não tem apenas considerações de ressalva quanto ao que se produz no rap atual. De pronto, ele aponta Baco Exu do Blues e BK’ como expoentes da cena que ele admira. “O Baco tem musicalidade para cantar, para produzir. Você ouve as produções dele e são ricas em instrumentações. A Flora Matos tem bastante isso também, muita musicalidade”.
Uma das polêmicas que sempre vem à tona em relação ao trabalho dos DJs é se o uso de sample é plágio ou homenagem. Cito a notificação que Djonga recebeu da família de Tim Maia após usar parte da música “Contacto com o Mundo Racional” na canção “Eterno”. Entre risos, KL Jay diz que não teve esse tipo de problema. “Nunca tive problemas com isso e agradecemos. ‘Homem na Estrada’, o Tim Maia liberou no bigode. Perguntaram para ele e ele disse ‘pode samplear que está tudo certo’. Vai ver ele mesmo não acreditava na música (Ela Partiu) e acabou que todo mundo conheceu a música por causa dos Racionais. A gente tem esse respaldo, essa moral, mas olha que era para ter vindo porque a gente sampleia mesmo”, gargalha.
Eu vejo o Brown mais produtor do que eu, bem mais! ‘Se tu Luta, Tu Conquista’, que é um clássico do SNJ, foi o Edi Rock que fez. Eu fiz ali a ‘Capitulo 4 versículo 3’ junto com o Brown, fiz a ‘Jesus Chorou’, mas tipo ‘Nego Drama’, ‘Da Ponte Pra Cá’, tudo o Brown, mano. A gente tem que saber do talento do outro, sabe? – KL Jay
Como um pensador musical em constante profusão de pensamentos, KL aponta e reflete sobre como se considera um instrumentista dentro de sua profissão. Ele entende o DJ como um verdadeiro ritmista e que conversando com os outros membros do grupo, chega ao tempo perfeito das composições.
O grande termômetro não é o algoritmo, é a rua, o termômetro é a rua, entendeu? São as festas de 300 pessoas, 200 pessoas. 500, 1000 pessoas. tipo, eu não tenho intenção de fazer super evento com 10 mil pessoas, eu como DJ entendeu? Se conquistar 300 ali, amanhã mais 200, amanhã mais 100, aí você vai lá longe, e assim você vai só aumentando o seu castelo. Eu acredito nisso. A vida é real, tá ligado? O algoritmo pra mim não é real. é mentira. as pessoas mentem o tempo todo pra ter número – KL Jay
Presente na entrevista, parceira profissional de mais de 15 anos, Leandra Silva fala sobre KL Jay com a mesma emoção com a qual o músico fala de música. Há uma sinergia visível entre os dois. Leandra tem a tarefa de puxar o freio do artista quanto à curadoria dos discos que entram no Festival Sample, mas a relação está longe se ser resumida ao pragmatismo. “Ele tem um hábito que é maravilhoso porque na convivência ele ouve música e ele toca com você as mãos (gesto de piano). A gente tá ouvindo e de repente ele faz com o dedo e você ouve uma nota que você não estava. Parece que ele te passa o ouvido de DJ. Aprendi com ele que sample é o feitiço da música e que o ouvido dele capta a alma das canções”, conta.
“A gente precisa exercitar esse processo de escuta com ele e manter exatamente o que ele é porque ele ouve você sem fazer força. E ele fala ‘olha essa música, olha essa nota, e ele pede para a gente ouvir com a sensibilidade incrível dele. Ele foi o cara que me mostrou o DJ como um grande intelectual”, aponta Leandra.
Ao falar sobre o trabalho de organização do Festival Sample ao lado de KL Jay, os olhos de Leandra marejam e KL sorri. A música e a honestidade são os marcadores da parceria e a admiração mútua funciona como força motriz para a realização do evento. “Quando a gente fez cards com a foto de todos os DJs, ele não aprovou. Quando questionei, ele falou que o evento não tem rosto. Então, eu sou fã. É o que a música é. Eu entendi essa força que vem de algum lugar e a música te pega. Eu entendi o nível de valor que isso tem pra ele, que não é uma festa, não é aparecer para alguém, é a forma de existir no mundo”, declara a jornalista.
Quem já foi em um show dos Racionais MCs ou em uma apresentação solo de KL Jay, entende do que Leandra fala. A magia da movimentação das mãos, o estudo e o conhecimento de 54 anos de vida e 35 de carreira traduzidos em ritmo. Algo um pouco diferente do simples apertar de botões dos pares contemporâneos. “A tecnologia quer acabar com DJ mascarando a evolução dos equipamentos, mas pra mim quer acabar com a coisa real original que é toca-disco com mixer, agulha, fone de ouvido. E eu sempre vou dar um exemplo do futebol. No futebol, evoluíram os estádios, os jogadores, o jeito de jogar, o dinheiro, mas eles continuam correndo atrás da bola, como foi desde o início, então por que que nós não podemos manter os toca -discos e o mixer?”, reflete.
“O que eu desejo muito com essa exposição é celebrar o “estamos vivos” porque esse cara fez tudo isso (olhando para KL Jay) e está vivo. Ele não está com uma seringa no braço, morto, e vai ser o aniversário dele. Então, o que eu quero de melhor é que a gente faça uma festa extraordinária e celebre a vida do KL Jay, celebre o que ele fez até aqui, celebre todas as coisas que, talvez muitas pessoas não saibam que ele fez por outras pessoas em termos de generosidade. Eu nunca colocaria meu dom a serviço de um homem que não merecesse, então neste momento eu quero que ele seja feliz e a mensagem da vida e da felicidade para um homem preto neste momento é algo que tem muito mais a dizer para o mundo do que qualquer coisa nesse festival”, conclui Leandra Silva. emocionada e emocionando.
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