O gênero de filme de super-herói tem sofrido com a saturação e o aparente descaso dos produtores em se esforçarem para contar boas histórias. Embora os quadrinhos, fonte base do gênero, seja uma fonte quase infinita de bons roteiros, os envolvidos em levar as aventuras para as telonas têm carecido de paciência e boa vontade. Assim, uma tonelada de novas produções têm chegado em velocidade recorde todo ano, canibalizando os espaços nas salas de cinemas. Para o bem do público e da indústria, “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” é um deleite em tudo que se propõe a fazer.
Após os acontecimentos do maravilhoso “Homem-Aranha no Aranhaverso”, Gwen Stacy e Miles Morales estão de volta aos seus respectivos universos e enfrentando as angústias de serem defensores de sua cidade e ao mesmo tempo manterem segredo da família. Ambos descobrem uma equipe de Pessoas-Aranha encarregada de proteger a existência dos multiversos e embarcam em uma jornada de autoconhecimento e aventuras perigosas.
Do primeiro ao último minuto, o filme oferece ao público arte e beleza em cada detalhe. Nada preenche a tela por acaso. Do cenário se transformando em rabiscos para focar nas cores dos personagens se abraçando, das cenas sem cortes acompanhando a movimentação dos heróis em cidades que parecem vivas, os diretores Joaquim Dos Santos, Kemp Powers e Justin K. Thompson preenchem o roteiro já primoroso com mais camadas usando a arte visual como fator adicional para permear a empreitada de Miles Morales, Gwen e cia.
Foi um acerto gigantesco da Sony permitir que os produtores não seguissem um padrão estilístico de animação rígida e deixassem que apenas a imaginação fosse limite e os envolvidos mostraram que não trabalhavam com cercas em volta do pensamento. A movimentação de tudo que aparece no telão é, se podemos usar algo para descrever, mágica. Das expressões mínimas no olhar de cada figura até as cenas de ação, tudo respira criatividade, mas só a técnica não colocaria “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” na prateleira de obra-prima. A experiência emocional é profunda e mergulhamos em algo que vai muito além de acompanhar Miles Morales batendo em vilões aqui e acolá. Shameik Moore como Miles e Hailee Steinfeld superam suas interpretações no trabalho anterior, conferindo a dose de carisma e dúvida que suas personas necessitam no decorrer da história e isso fica ainda mais ressaltado por receberem as companhias luxuosas da fodona Issa Rae com a igualmente maravilhosa Mulher-Aranha Jéssica Drew, Daniel Kaluuya como Spider-Punk e de Oscar Isaac como Miguel O´hara, o Homem-Aranha 2099. E Isaac não decepciona. Seu Aranha futurista é impávido, inteligente, ambíguo e imponente, sendo mais que um simples adendo na história. Ele dedica sua vida a evitar que as perdas que o moldaram atinjam outras pessoas e isso o torna demasiadamente inflexível.
Para quem acompanha os quadrinhos, as menções aos múltiplos universos onde as variações do Aranha vivem será muito mais que um aceno. É um presente respeitoso que envolve citações e recursos comuns dentro da nona arte.
São 2h20 de espetáculo, sem pontas soltas, sem tempo para respirar e sem pontos baixos. Cada pecinha vai sendo atraída de forma perfeita umas às outras e somos brindados com uma coisa que tem ficado rara no gênero dos uniformizados: uma construção familiar coesa em volta dos protetores. É impossível não simpatizar com o núcleo familiar de Gwen e de Miles. São pessoas carismáticas tentando construir suas histórias enquanto sabem que existe algo de severo acontecendo com seus filhos, mas em nenhum momento há aquela escorregada de caricaturar os pais como figuras perseguidoras chatas. Há uma história intimista dentro da trama central, ou mesmo podemos dizer que eles são a base para que os protagonistas consigam enfrentar com mais potência as ameaças de um multiverso em crise. É a família como centro sem resvalar no piegas.
Quando o vilão Mancha surge, o filme nos leva a crer que será só mais uma piada escapista tão comum nos filmes da Marvel, mas sendo o criminoso uma reverberação das aventuras anteriores, na verdade uma vítima, a forma como o encaramos no tabuleiro muda, ainda que suas ações comecem a sair do controle e ele passe a ficar bem mais sério que em sua apresentação.
Resumindo, tanto Miles quanto Gwen, Mancha e Miguel O´hara, são heróis e vítimas e ao mesmo tempo vilões dependendo do ponto de vista. Se a tragédia os molda de alguma forma, todos buscam redenção, aceitação e afeto, mesmo que seja através de suas máscaras, usando os poderes que nasceram através de acidentes do acaso ou do destino escrito como acredita o Spider 2099.
Ao contar essas trajetórias utilizando de todas as tintas possíveis, artística e metaforicamente, “Através do Aranhaverso” se junta ao seu antecessor como uma inesquecível experiência emocional e visual que não deve ser perdida de forma alguma.
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