Cantados nos terreiros, rodas, escolas de samba, ruas e avenidas do país, os sambas embalam o cotidiano brasileiro há mais de um século. Contudo, muitas vezes a riqueza das letras e suas poesias acabam não recebendo a atenção merecida, embora cantadas com entusiasmo pela beleza das melodias que as adornam. Partindo da percepção de que nossos sambistas são nossos maiores poetas e tendo sua narrativa iniciada numa homenagem a Nei Lopes, o espetáculo inédito “Negra Palavra – Poesia do Samba” estreia dia 11 de setembro no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro, às 19h. Encenada pelo Complexo Negra Palavra, a peça teve sua dramaturgia desenvolvida por Renato Farias, que assina a direção com Muato, estreante na função e ainda diretor musical do trabalho. Este projeto foi contemplado pelo edital Pró-Carioca Linguagens – Programa de Fomento à Cultura Carioca, Edição PNAB, da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, através da Secretaria Municipal de Cultura.
A concepção do espetáculo teve inspiração nas inúmeras pesquisas realizadas por Nei Lopes, um dos maiores intelectuais negros, que publicou romances, contos, poemas e dicionários fundamentais para entender a importância do legado e da presença afro-brasileira no Brasil. Unem-se ao anfitrião as letras de outros grandes poetas / compositores, como Arlindo Cruz, Bezerra da Silva, Candeia, Cartola, Geraldo Pereira, Guará, Jorge Aragão, Jovelina Pérola Negra, Leci Brandão, Martinho da Vila, Paulinho da Viola e Zé Keti, entre outros mestres do samba. Na cena, as letras / poemas serão ditos, e não cantados, reforçando uma compreensão inédita do lirismo das composições.
“A escolha das letras teve início na pesquisa do Renato Farias como dramaturgo, mas também se deu muito na sala de ensaio, nas pesquisas de cada integrante do elenco e nas propostas que foram surgindo a partir delas, considerando o entendimento do que se pretendia transmitir na dramaturgia. A gente fez um recorte, incluímos somente compositores negros e, ainda assim, muita gente ficou de fora. Pode ser que questionem, mas dar conta de todo o universo e riqueza do samba é uma tarefa muito difícil para um único espetáculo”, pondera o diretor Muato, músico com formação clássica e destaque em criação de trilhas sonoras para teatro.
Compreendendo que o samba nasce no feminino, nas casas que primeiro o acolheram ainda nos tempos em que resistia sob o signo do preconceito e da discriminação, o Complexo Negra Palavra, um coletivo masculino, convidou a atriz Olivia Araújo, única mulher em cena, para contribuir com sua experiência profissional e vivência pessoal diretamente ligada ao samba. “Está sendo uma experiência linda poder falar de samba que, para nós, brasileiros, não é apenas um gênero musical: é a nossa identidade, mesmo. É como a gente pensa, se move, se emociona”, resume Olívia.
Antes da estreia nos palcos, como pontapé inicial do projeto a equipe realizou na quadra da G.R.E.S. Renascer de Jacarepaguá e G.R.E.S. Mangueira apresentações de células do espetáculo somadas a poesias pensadas, e especialmente trabalhadas, para as agremiações – em outubro, quem recebe o projeto é a G.R.E.S. Portela. Como o início dessa manifestação, que extrapola letra e melodia, se deu nos terreiros, a ideia desta ação local foi pedir licença às escolas de samba para colocar o projeto em cena.
“As escolas de samba estão no projeto por um pensamento de reverência histórica, porque o samba nasce nos terreiros, que se transformam depois nos terreiros de escola de samba. E é lá onde o samba ainda tem a dimensão de realeza que ele possui. Então, este gesto é uma grande homenagem a sambistas, mas também uma grande homenagem ao próprio samba como um fato histórico que permeia a vida do povo brasileiro, sobretudo do povo preto brasileiro”, observa Renato Farias, que na primeira peça do Complexo Negra Palavra teve como personagem central o poeta Solano Trindade.
Seguindo a linha dos trabalhos da companhia, neste o debate antirracista também se faz presente e lança luz para uma cultura e uma manifestação musical que é maior do que o próprio samba. O debate passa por um modo de vida, por atos de resistência que têm seguido de geração em geração, e ainda por uma reverência a toda uma ancestralidade africana. E isso tudo fala especificamente da população negra brasileira.
“O povo negro constrói a identidade do samba e é um povo que segue sendo a grande referência dessa cultura, desse modo de vida, dessa manifestação popular. Investigamos a alta voltagem poética que as letras de samba já trazem consigo e honramos os sambistas como poetas que são. Poesia e samba são coisas que nasceram juntas. Acho que precisamos tornar uníssona a compreensão de que as letras de samba são as próprias poesias. Estamos dando a dimensão de poema dessas letras de samba, porque os sambistas já têm a grandeza de poetas, mas isso às vezes não é tão compreendido”, finaliza Renato Farias.
0 comentários