SÃO PAULO – Na noite de ontem, o Allianz Parque se transformou em palco de um espetáculo hipnótico: Kendrick Lamar realizou sua única apresentação no Brasil como parte de sua primeira turnê mundial, a Grand National Tour, conectando passado, presente e futuro com uma performance que foi tanto íntima quanto grandiosa.
Uma narrativa em quatro atos
O show de aproximadamente 90 minutos foi estruturado em quatro atos, esculpindo uma narrativa emocional e visual para o público presente. Kendrick transitou entre clássicos do passado — como “King Kunta” e “Bitch, Don’t Kill My Vibe” — e faixas mais atuais, como “Luther” e “Not Like Us”, essa última apontada como disstrack do ano no Grammy.
Cada momento era acompanhado por um balé de dança precisa e coreografias simbólicas: Kendrick não estava apenas entregando música, mas conduzindo um espetáculo visual e emocional. Entre projeções, clipes e entrevistas filmadas, ele mesclou a voz ao diálogo com sua própria obra e com o público — às vezes exaltando-se, às vezes desafiando-se.
Confronto interno e autocrítica
Um dos ápices da noite foi o momento em que Kendrick se vira para si mesmo, com reflexões projetadas no telão enquanto performava “HUMBLE”. “Gosto de ser visto”, dizia-se no painel, enquanto no palco o artista parecia reduzir sua própria grandiosidade com gestos contidos. Esse embate interno recai sobre quem é e quem ele quer ser, tensionando o papel público do artista com sua vulnerabilidade privada.
Esse tipo de introspecção não é novidade para os fãs que acompanham Mr. Morale & the Big Steppers, álbum que expõe sua vida familiar, seus dilemas íntimos e seus tormentos existenciais. No palco, esses fragmentos de vida são costurados com letras, luzes e pausas — e provocam identificação, surpresa e deslocamento.
O público como personagem
Kendrick sabia que não faria sentido abrir mão da conexão direta com a plateia. Entre segmentos mais densos, ele intercalou hits consagrados para que o silêncio fosse quebrado por explosões de euforia coletiva. O momento mais inflamado da noite talvez tenha sido quando “Not Like Us” foi deixada para o final: o coro de “Hey, Drake, vai tomar no c#” ressoou no estádio como um coro combativo.
Nas últimas notas, ele encerrou com “gloria”, quase em tom de liturgia, fazendo do Allianz Parque um altar de celebração artística — e prometeu que esta seria sua primeira turnê mundial, mas não a última.
Impacto e legado
O show de ontem foi mais do que um concerto; foi um rito de passagem, uma reafirmação do poder narrativo do rap e do lugar de Kendrick Lamar no panteão dos grandes artistas contemporâneos. Ele mostrou que, mesmo com a carreira já consolidada, ainda há espaço para inquietude, reinvenção e diálogo — com os fãs, consigo mesmo e com o presente.
Para o público que compareceu — e para quem acompanha de longe — o show serviu como lembrete vivo de que a música pode ser veículo e reflexo, palco e espelho, e que um artista como Kendrick continua a questionar a si e ao mundo com ousadia.
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