O Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, em Salvador, oficializa sua gestão coletiva inédita comandada por mulheres. A nova direção institucional fica a cargo da produtora cultural Cintia Maria, enquanto a gestão artística passa a ser liderada pela diretora audiovisual Jamile Coelho. As nomeações acompanham o afastamento da presidência da instituição por parte do seu fundador José Carlos Capinam, o aclamado poeta da Tropicália, compositor de sucessos do Gilberto Gil (“Soy loco por ti America” e “Vira Mundo”), Caetano Veloso (“Clarice”), João Bosco (“Papel Machê”) e Edu Lobo (“Ponteio”).
Ao longo de duas décadas, o Muncab se consolidou como um espaço de memória dedicado a salvaguardar as culturas de matrizes afro-brasileiras. É considerado o único espaço no Brasil completamente dedicado à reunião e à valorização dos artefatos e dos registros da cultura diaspórica. A nova gestão desenvolve um plano de reestruturação do equipamento para reabrir as portas, fechadas desde 2020, que contempla as áreas de visitação, acervo, pesquisa e educação. O Muncab também quer viabilizar programa de residência artística destinado a artistas pretos, além de se aproximar da comunidade dos países africanos e da diáspora afro-atlântica.
“Como dizia a educadora baiana Makota Valdina, é preciso ser sujeito da história e não objeto. Sendo assim, vejo esse novo desafio como uma missão de honrar a trajetória dos nossos ancestrais. As matrizes africanas têm um papel fundamental na construção da identidade brasileira. Entretanto, o que vemos ao longo dos anos é que a ignorância insiste na ideia de reforçar o apagamento dessas contribuições à formação da sociedade brasileira. O museu é um espaço de memória, mas também de reconhecimento e de reconexão, como diz Capinam, “aqui nós trabalhamos com o tempo, com o que foi, o que é, e o que será”, defende a nova diretora institucional.
Natural de Salvador, Cintia Maria é empresária e gestora cultural. Desenvolve e gerencia projetos inovadores, criativos e de impacto social na área cultural com foco nas populações invisibilizadas e culturas identitárias. Cineclubista e fundadora do Cineclube Antônio Pitanga, sócia da Editora Emoriô, é cofundadora do projeto de formação audiovisual Núcleo Baiano de Animação em Stop Motion (NUBAS) e idealizadora do Cine Janela.
A cineasta soteropolitana Jamile Coelho iniciou sua carreira na gestão cultural como Conselheira de Cultura em Camaçari, região metropolitana de Salvador. Bacharel em Artes pela Universidade Federal da Bahia, foi responsável pelo projeto de implantação do Museu Virtual Roque Araújo. Acumula mais de 30 prêmios durante a sua trajetória como curtametragista de animação. Contribui para a descentralização do audiovisual através da realização de oficinas em quilombos, terreiros, universidades e escolas.
Espaço e acervo
Inaugurado em 2011 por Capinam, o Muncab ocupa cinco andares de um prédio neoclássico, cuja entrada é forjada por uma grade de ferro, chamada “Histórias de Ogum”, em homenagem ao Deus africano da metalurgia, com domínio sobre a manipulação do ferro e do aço. Essa estrutura é uma notável reverência às contribuições africanas para o continente americano e o Brasil. A obra é uma criação do artista plástico baiano José Antônio Cunha (1948), ou simplesmente J. Cunha, descendente de bantos africanos e dos índios kariris, que também assina a criação da identidade visual do bloco afro Ilê Aiyê e é conhecido como designer do carnaval.
O acervo permanente é composto por mais de 400 peças, divididas entre arte contemporânea, erudita, popular e sacra. Tratam-se de pinturas, esculturas, gravuras, quadros e documentos sobre a cultura diaspórica nas Américas. Entre os artistas plásticos negros que o Muncab possui trabalhos estão a gravurista mundialmente conhecida Yêdamaria (1932-2016). Ela assina o quadro “Cabeça de Orixá” (1978), que funde pintura com colagem numa alusão à diversidade humana representada por Iemanjá unida a si mesma, a divindade africana das águas salgadas e da fertilidade, considerada a Mãe de todos os Orixás. A pintura foi confeccionada para a conclusão do Mestrado em Artes da Yêdamaria na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos.
O Muncab abriga obras do acervo do Mestre Didi (1917-2013), escultor-sacerdote da religião de matriz africana Candomblé. Uma das peças é o “Iwin Igbo – Espírito da Floresta” (1980), escultura vertical de madeira com características da arte tradicional dos objetos litúrgicos das religiões africanas, ligadas ao culto dos ancestrais. E “Eyen Lawá – Pássaro Ancestral, A Grande Mãe” (1993), escultura no formato de pássaro, que é um dos símbolos da gramática visual iorubá. A peça reverencia as divindades femininas da criação. Deoscóredes Maximiliano dos Santos, nome de batismo do Mestre Didi, começou a criar objetos ritualísticos de cunho mítico afro-brasileiro desde a infância, aprendendo a manipular os mais antigos objetos do culto aos ancestrais. Ele era descendente da tradicional família Asipa, originária de Ketu, importante cidade do império Yorubá. Sua obra artística, realizada em diversos materiais, é de singular sensibilidade e técnica inovadora dentro da contemporaneidade estética da arte, tendo sido registrada em livros e prêmios de vários idiomas.
Há também no museu esculturas místicas e abstratas em madeira de Rubem Valentim (1922-1991), que carregam características do abstracionismo geométrico a partir de linhas, quadrados e triângulos e da iconografia afro-ameríndia. A escultura vertical em madeira “Cosmogonia dos Símbolos, Navio VI” (2007), de Emanoel Araújo (1940), move-se pelo tempo para registrar os significados das travessias afro-atlânticas e propõe uma reflexão sobre a perversidade das embarcações escravocratas. Além de obras do escultor Agnaldo dos Santos (1926-1962), referência em artes sagradas da diáspora negra. Este artista integra o núcleo sacro do Muncab, dedicado ao sincretismo entre as religiões europeia e africana.
“Os ancestrais foram submetidos ao ritual do esquecimento de suas origens antes de embarcarem em navios. Mas essa crueldade só impulsionou o nosso ‘lembramento’. Como dizia Mãe Stella de Oxóssi, ‘o que não se registra, o tempo e o vento levam’. Como o símbolo adinkra do sankofa prega, caminharemos para frente, sem nunca perder a referência de quem veio antes”, reflete Jamile sobre a valorização do Muncab.
Tropicalista
Aos 81 anos de idade, Capinam se aposenta do museu ao qual esteve na liderança desde 2011, tornando-se “Presidente de Honra”. “O Muncab opera com descobertas do que ainda não é o suficiente e do que significou a importância do negro na cultura brasileira. É dentro dessa perspectiva que o museu pode oferecer sabedorias e revelando as contribuições africanas, mesmo que limitadas pela opressão, elastecendo a cultura brasileira”, avalia o artista.
José Carlos Capinan tem passagens pela comunicação, gestão pública, pelo cinema e pelas artes, além da música. É imortal da Academia de Letras da Bahia e formado em teatro, medicina, pedagogia e direito. O artista tem na trajetória roteiros, letras e textos para a Sinfonia da Cidade de Salvador, produções de shows de Gal Costa, Macalé, Luiz Gonzaga, além de parcerias e composições com Tom Zé, Caetano Veloso, Moraes Moreira, Paulinho da Viola e Fagner, entre outros nomes.
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