Peça ‘Aquilo de que não se pode falar’ faz uso da Língua Brasileira de Sinais

por | dezembro 11, 2021

Baseado no livro “Vaca de nariz sutil” – escrito por Campos Carvalho e que completou 60 anos em 2020 –, está em cartaz o espetáculo “Aquilo de que não se pode falar”, que parte da premissa de fazer coexistir, num mesmo processo de criação, duas línguas e culturas que pouco conversam entre si: libras e português. Com texto de Diogo Liberano, a peça projeta uma comunhão peculiar entre tais línguas e acolhe também possíveis colisões entre elas. Com temporada até o dia 15 de dezembro, sempre às 19h, ingressos poder ser retirados gratuitamente por meio da plataforma Sympla.

“’Aquilo de que não se pode falar’ é uma obra que responde a um longo processo. O projeto que dá origem a ela se iniciou em 2016, quando me deparei com o livro ‘Vaca de nariz sutil’, de Campos de Carvalho, e o imaginei se tornando espetáculo em um solo de teatro-dança, onde eu viveria o soldado esquizofrênico avassalado pela guerra. Foi aí que o Vinícius Arneiro, diretor do espetáculo, lançou a proposta de reavaliarmos o projeto e convidarmos um ator surdo para compartilhar a cena comigo dando corpo a Aristides, personagem que divide um quarto de pensão com o soldado. Eu fiquei encantado com a ideia. Na obra de Campos de Carvalho, embora compartilhem o mesmo quarto, os personagens nada sabem um do outro. No romance Aristides é um personagem episódico, sempre narrado e apresentado de forma um tanto pejorativa por parte do soldado. Após conversas com a Erika Rettl, que tem um projeto com artistas surdos, reformulamos o projeto”, conta Filipe Codeço, idealizador do projeto em parceria com Vinicius Arneiro.

O espetáculo é interpretado por um ator surdo, cuja língua materna é libras e um ator ouvinte, que tem o português como matriz.  Ao gerar duas linhas narrativas que se desdobram mutuamente, a dramaturgia  se desenvolve  sem hierarquia linguística e abre diversas leituras. A peça é um retrato contundente da devastação subjetiva operada pela guerra, além de um convite à reflexão sobre os perigos presentes no discurso e no militarismo em âmbito local e global.

“Trata-se de um projeto que se orienta pelo desejo de fazer confluir as experiências e os modos de vida, por meio das suas diferenças.. É um caminho sinuoso e de constante aprendizado, por isso revela muito sobre a urgência de buscarmos maneiras de fazer conviver aqueles que se diferem entre si. O funcionamento das coisas deste mundo, da forma como elas são, pouco diz respeito às necessidades básicas de uma cidadã ou cidadão surdo, por exemplo. O termo acessibilidade hoje em dia é corrente e é importante que seja assim, mas também é importante a consciência de que a acessibilidade em si é apenas um passo na busca por equidade de oportunidades, se considerarmos o quanto pessoas surdas são desfavorecidas no acesso à esfera social. O desafio e o desejo deste projeto é assimilar de maneira artística a língua brasileira de sinais, criando uma obra em diálogo direto com a cultura surda, que tem para nós uma importância fundante”, afirma Arneiro.

A montagem narra o regresso de um soldado que, em campo de batalha, é diagnosticado com esquizofrenia e afastado de suas funções. Ele chega na cidade e aluga uma vaga num quarto de pensão próximo ao cemitério, ao entrar no recinto, depara-se com um desconhecido, um homem surdo com quem vai dividir o quarto. Foi criada uma dramaturgia surda em um processo de transcriação, compartilhado entre o dramaturgo Diogo Liberano, o ator Marcelo William e os intérpretes de libras Jhonatas Narciso e Lorraine Mayer. A partir daí absorveu-se, na tessitura dramatúrgica, todo um campo de uma percepção desse mundo, antes ignorado.

“Como autor, por desconhecer a língua brasileira de sinais, o que fiz foi simplesmente escrever esta narrativa tal como sempre escrevi: por meio da língua portuguesa escrita-falada. Digo “simplesmente escrevi” porque o exercício da encenação esteve o tempo inteiro atento às traduções: tradução das palavras da dramaturgia para a escrita em língua brasileira de sinais; tradução do texto para imagens, ações, movimentos e gestos; penso que este projeto, guiado pelo diretor Vinicius Arneiro, tornou-se um texto feito de muitos textos, um emaranhado de múltiplas línguas e que, nesse sentido, também a dramaturgia é um dos textos que compõem esse emaranhado”, conta Liberano.

As línguas de sinais foram internacionalmente banidas dos ambientes educativos por mais de cem anos, a partir de resoluções de uma conferência de educadores de pessoas surdas (formada em sua maioria por ouvintes) realizada em Milão em 1880. Os ecos dessa resolução são sentidos até hoje, manifestando-se num quase desconhecimento das línguas de sinais por parte da população ouvinte.

“Eu adorei o processo e o resultado que tivemos. Foi enriquecedor como ator viver todo esse dia a dia de trabalho, mesmo que remoto a maior parte do tempo. O texto era muito grande e denso, não foi nada fácil construir essa trajetória. E como iniciativa de buscar estratégias que pudessem contemplar a todos de uma forma mais igualitária foi criado para além dos ensaios, um espaço que nomeamos GT de Libras. Ele foi o pontapé fundamental para a compreensão de todo conteúdo que estava em língua portuguesa e com isso pudemos transcriá-lo em libras. Todo o texto antes foi traduzido e depois transcrito, com trocas e construções que iam muito além da tradução de um sinal para uma palavra, passava também pela cultura de cada língua e como elas eram estabelecidas. Só depois desse trabalho é que pude estar em cena”, declara Marcelo William, ator.

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