Em “Espírito Livre”, canção lançada há um mês, Loïc Koutana, assinando artisticamente como L’HOMME STATUE, entoa os versos“ Tu nunca vai me prender, espírito livre”. Como um mantra, o artista dá o recado de que guia sua arte. Sem compromissos com o grande mercado musical industrializado, canções como “Desejo” e “Canto de Sereia” ecoam liberdade, inclusive na mistura de idiomas que forja a poesia existente nas canções do francês radicado no Brasil.
A música de Koutana ainda não é conhecida de forma extensa, mas provavelmente você já conferiu o trabalho de modelo dele em clipes de artistas aclamados como Elza Soares, Rincon Sapiência e Mahmundi. Nascido e criado em Paris, passou um tempo na Costa do Marfim, terra natal de sua mãe, para não perder conexão com sua ancestralidade. Essa multiculturalidade está presente em seu som.
Recentemente o cantor se apresentou na Parada Gay de São Paulo, a maior do mundo, mostrando que o radar para sua música está ligado e novas possibilidades surgirão.
O português sempre foi uma língua muito importante pra mim, o Brasil foi o país que me acolheu quando eu saí da França para vir morar aqui. Eu cheguei no Brasil sem saber falar português, como uma criança que está aprendendo justamente uma nova língua, então de alguma forma a gente pode dizer que eu renasci no Brasil. Falo isso, porque eu aprendi o português de uma forma muito inocente, muito crua e é por isso que faço questão de quando escrevo as músicas de não chamar uma pessoa para me ajudar a escrever as letras, faço questão também de deixar os meus “erros” de português, de deixar a minha entonação e meu sotaque – Loïc
Foto: Instagram
Sendo o português uma língua tão poética e forte, embora o francês também seja um idioma românico, se justifica a escolha pelo uso do título “Espírito Livre” e não ““esprit libre”. Segundo o cantor e modelo de 28 anos, o nome em nosso idioma soa mais autêntico e menos “duro”.
Loïc Koutana podia oferecer uma música pesada, quase amargurada. Preto, gay e estrangeiro, seu deslocamento em várias frentes em nossa sociedade poderia se configurar em um lamento óbvio, embora justo, mas não é o que se confere em um álbum como “SER”, por exemplo, trabalho que mistura delicadeza pop com referências eletrônicas, afro e da MPB.
Confira nosso papo completo com Loïc Koutana/ L’HOMME STATUE
Você fala sobre cura em “Espírito Livre”. Sua música é sempre autobiográfica?
Eu sempre falo de cura de alguma forma nas minhas músicas. É engraçado porque eu me dei conta disso ultimamente. O meu primeiro álbum se chama “SER”, e é justamente quase um questionamento sobre o que é ser um jovem preto LGBTQIAP+ no Brasil. O que é ser um jovem preto e gringo no Brasil? O que é ser você mesmo? O que é confrontar com seus medos, com o ciúme, com a mentira, com a vida e com os problemas? Escrevendo “Espírito Livre”, eu simplesmente quis respirar e me curar, mas dessa vez do lado mais solar, o lado mais leve. Pessoas pretas sempre tem que ser vistas como fortes, a gente tem que lutar, a gente tem que dar o nosso melhor, mulheres pretas tem que ser uma fortaleza para os outros. E onde está o descanso? Onde está a cura? Onde está o nosso tempo para descansar, entendeu? Então, por isso que eu fiz uma música chamada “Espírito Livre”, na qual eu simplesmente falo de me curar, de me conectar comigo (…) É muito importante pegar um tempo para cuidar de si, cuidar da sua alma, cuidar da sua autoestima, cuidar do seu cérebro, cuidar do seu espírito, porque a gente está evoluindo no mundo que está cada vez mais intenso e sem piedade. Então eu vejo que quanto mais a gente cuidar do nosso ser e do nosso espírito, vamos atrair coisas boas, certo? Ser pessoas solares, então é sobre isso, essa música é sobre cura.
Me fala um pouco sobre sua história com o nosso país, sua chegada aqui, expectativas, diferenças culturais e quando terão apresentações.
Então, eu amei essa pergunta porque muitas pessoas me conhecem através das fotos que eu fiz sendo modelo, outros me conhecem através do clipe no qual eu participei do Baco Exu do Blues, outros me conhecem pela minha participação no clipe da Elza Soares. Enfim, tudo isso para dizer que eu fiquei conhecido através de muitos projetos por aí, muitos jobs de modelos. Muitos sabem que eu sou conhecido no Brasil pelo TikTok, mas poucos sabem realmente da minha jornada aqui. Eu vim ao Brasil para estudar na USP, fiz intercâmbio de economia, comércio internacional e línguas, tudo isso (risos). Vim para fazer os meus estudos e não falava português, eu aprendi o português ao vivo quando estava na USP, foi difícil, achei até que eu não ia conseguir a pós-graduação, mas eu consegui. Estou muito feliz e muito grato, isso é mais uma coisa que mostra que na vida não tem limites, sabe? A primeira intenção é entender que a gente é capaz, que a gente pode chegar lá. Uma vez que a gente se lança, vê que tem muitas surpresas na vida.
Então o primeiro choque no Brasil foi a língua, como não falava português e, também, a cultura. Eu adorava ver como às vezes coisas que eu aprendi na França, eram totalmente opostas aqui, por exemplo, o jeito de ser caloroso aqui, de dar abraço, na França tudo mais rígido, muito mais distante. Eu falo desse ponto, porque eu sinto que o Brasil me libertou, o Brasil me permitiu entender que eu sou capaz, que o meu corpo é válido, que minha existência é válida, as pessoas te dão a chance aqui, as pessoas te olham. Na França, se você não é “filho de”, se você não é “filha de”, se você não tem aquela conexão, literalmente ninguém te dá nem a hora, sabe? Então eu fico muito feliz de poder ter uma oportunidade, como pessoa preta, de existir aqui, de deixar a minha arte crescer, de testar e me expressar artisticamente (…) É como se dentro de uma mesma vida eu tivesse uma reencarnação, no sentido de que antes eu era totalmente outra pessoa. Eu saí da França com dezenove anos, então é como se toda a primeira parte da minha vida, a minha infância, foi uma e eu estou tendo uma segunda infância no Brasil, um outro renascimento.
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