O branqueamento social da cultura negra a partir do rapper VND e o pensamento de Clóvis Moura

por | fevereiro 26, 2024

Lucas Victor Quaresma Barbosa

Em 2021, VND, músico carioca que se destaca na cena do RAP, lançava seu disco de estreia, Eu também sou um anjo. Uma obra que muito me marcou pela sua qualidade estética e pelas referências que ela traz, desde Racionais Mc’s, passando por Jorge Ben, enfim; mas o que mais me instiga nessa obra é a sua visão de uma sociedade marcada pelo racismo e como ela afeta a nós negros, em particular, indo desde a violência policial até a forma como a sociedade branca*, ao mesmo tempo que nos diferencia, quer, esteticamente, nos furtar. Sobre isso, especificamente, trata a sétima faixa, Alegorias e Adereços

Capa do álbum Eu também sou um anjo, VND. Foto: Reprodução/Spotify

A música é uma reflexão sobre uma juventude branca que enxergou os negros em sua cultura, tentando, esteticamente, imitá-los. Essa imitação, que é produzida apenas superficialmente, pode ser considerada, de fato, como uma domesticação da cultura negra, que é vista apenas no plano estético, fazendo referência aos desfiles das escolas de samba, no quesito das alegorias e adereços. Vejamos a letra: 

[Verso]

Por que me quer tão bem agora? 

Ela sabe que eu ainda tô fudido 

Você me amaria nesse buraco? 

Não tô pedindo ajuda 

Sozinho, eu me curo 

E se eu fosse um corpo negro enjaulado Sem joias, sem grife 

Sem os carro alegórico 

Preço de não ter nada nas mãos 

Metafórico 

Não toquei no rádio 

Influencia o doutor 

Grades, janelas e cercas elétricas 

O ódio não é fictício 

Alegorias e adereços 

Nota zero 

O fim da merda é só o começo 

Eu te pеrguntei de novo 

Você me amaria nеsse buraco? 

Alegrias e adereços 

Nota zero 

Nem chegamos no próximo requisito, ei É 

Essas fantasias pesam como pedras no tornozelo Um relógio caro em cada pulso 

Tô desmontando os adereços 

É 

Que eu vi maçã num pé de trigo 

Eu vi um rico procurando emprego 

Vocês da merda é só o cheiro 

E como ousa falar dos meus medos? 

É, por que me quer tão bem agora? 

Por que agora ver um Anjo em mim? Você me amaria mesmo assim? 

Me tiraria desse buraco?

Por que me olha diferente agora? 

E vê que o barco tá longe de afundar 

Talvez você não me amaria nesse limbo 

Por que logo agora? 

Ah 

Eles não dão asas para um Neguin como eu 

Andei quebrado 

Sobrevivi 

Consegui respirar nesse poço frio 

As joias e roupas 

Não levo nada daqui 

Quebrei a cara e sobrevivi 

Então, me responde 

Por que me quer tão bem agora? 

Notemos, a partir dela, como a música se coloca: fala de uma situação de relacionamento de um negro favelado com uma pessoa branca, afirmando que esta só se interessa pelo corpo negro a partir de sua estética. Quase como se quisessem ser negros, mas apenas superficialmente. Nesse sentido, a música questiona: até que ponto vai esse querer bem do branco em relação ao preto periférico? 

Fazendo referência a Racionais Mc’s em Negro Drama, os negros passam, segundo a letra dessa música, a influenciar as camadas brancas elitizadas da sociedade brasileira, como ela diz: Nós é isso, aquilo que cê num dizia? Seu filho quer ser preto, ah, que ironia. Mas, em VND, já não é o filho do doutor o influenciado, mas o próprio doutor (Não toquei no rádio, influenciei o doutor). 

O objetivo da música é, factualmente, enfatizar que, apesar dessa influência, os brancos não abrem mão do seu ódio contra o povo negro. Continuam ainda com suas grades, janelas, cercas elétricas, ressaltando seu medo em relação à juventude preta usando os muros e suas redes de proteção para gerar uma falsa sensação de segurança. 

Portanto, estamos falando de pessoas que querem “ser” pretas esteticamente (até no modo como se portam em sociedade, como ainda fala Negro Drama, sobre os brancos de classe média/alta: Ginga e fala gíria, gíria não, dialeto); mas, esse “querer ser” para exatamente por aí, como VND questiona: E se eu fosse um corpo negro enjaulado, sem jóias, sem grife, sem os carro alegórico?

Ou seja: retirado aquilo que o branco “pode” ter do negro, que é a estética (não a vivência, as alegrias, as dores, os modos de viver e ser no mundo, etc.), perde o ponto de interesse. A partir desse questionamento, podemos pensar que é quando o negro volta a ser apenas um negro; ou mesmo nunca deixaram de ser, pois, nas palavras de VND, Eles não dão asas a um neguinho como eu

Podemos, nesse sentido, analisar a situação a partir da própria indústria musical burguesa, que começa a tentar se apropriar do RAP, tirando dela o conteúdo e colocando em voga apenas sua forma, de maneira esvaziada, inclusive na intenção de transformar a “cultura” em simples “entretenimento”. Voltando à frase Alegorias e adereços nota zero, interpreto, também, como essa indústria vê o próprio RAP, já que não se interessam necessariamente pelo conteúdo político do gênero, mas sim pela sua fantasia, do que é alegórico, visto superficialmente. Nem chegamos no próximo requisito.

Capa para a reprodução no YouYube da música Alegorias e Adereços. Foto: Reprodução/Youtube

A associação entre elementos alegóricos de carnaval e a apropriação branca da cultura negra, gerando seu esvaziamento em relação ao conteúdo, é o que me interessa aqui. Especificamente porque, em 1988, Clóvis Moura, no livro Sociologia do Negro Brasileiro, falava algo muito parecido, tratando especificamente sobre as Escolas de Samba cariocas. 

Isso porque no início de sua história, os grupos sambistas de negros fantasiados desciam o morro para eles próprios produzirem seu carnaval através de sua própria cultura,

vinculada, é claro, ao samba. No início, os brancos os viam nas praças com maus olhos, como grupos de arruaceiros. Logo, porém, essas agremiações pretas tomam a cidade. Nesse momento, como afirma o autor, os negros sambistas, que são rotineiramente humilhados pela sociedade branca, passam, nos quatro dias de carnaval, a dominar simbolicamente os espaços formulados para esses próprios brancos. Estes, que passam a gostar do ritmo, são ridicularizados por não saberem sambar, e nem sequer, por isso, podem integrar uma escola de samba. 

Existe, aqui, um paralelo com o RAP, que nasce nos EUA já como negro e, da mesma forma também se estabelece aqui, levando para sua estética todo o seu gingado, seu jeito de ser e se relacionar consigo e com o mundo. Assim como os brancos ridicularizados por não saberem sambar, a própria música Negro Drama, dos Racionais MC’s, reflete sobre a pouca aceitação desse grupo dentro da cultura urbana, após o verso já citado se referindo aos filhos dos ricos que passam a ouvir o gênero musical: Ei bacana, quem te fez tão bom assim? O que cê deu, o que cê faz, o que cê fez por mim? Eu recebi seu tic, quer dizer, kit de esgoto a céu aberto e parede madeirite […]

Voltando a Clóvis Moura, o autor afirma que a sociedade branca percebe a capacidade negra de organização, sua potencialidade cultural através dessas escolas de samba, e, então, as institucionaliza, colocando-as no circuito oficial do carnaval. Que mal há nisso? É que elas se transformam em simples objeto da dinâmica carnavalesca, tornando-se, praticamente, apenas mais uma atração turística. Assim, complementa ele, desaparecido o conteúdo que deu forma às escolas de samba, baseado na auto-afirmação do povo negro perante a sociedade branca, estas agremiações passam por um processo de branqueamento social e ideológico. Viram simples Alegorias e Adereços. 

Concluo afirmando que o branco insiste, de todo modo, nessa tentativa de se apropriar da cultura negra, transformá-la em objetos estéticos para sua comercialização, tentando pautá-la nos padrões que eles tentam ditar, seja no RAP ou nas Escolas de Samba, que, é verdade, sobrevivem com sua maneira de ser no mundo, apesar destes percalços. O álbum de estreia do VND e, especificamente, sua sétima faixa, não nos deixam mentir. 

*Ressalto que, ao longo do texto, quando falo de sociedade branca ou mesmo branco me refiro a brancos ricos ou de classe média alta, que representam a cultura burguesa ou pequeno-burguesa.

REFERÊNCIAS 

MC’S, Racionais. Negro Drama. São Paulo: Cosa Nostra, 2002. Suporte Digital. 6’53”

MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.

PORTAL, Equipe do. Álbum “Eu também sou um anjo”, de VND, chega aos 10 milhões de streamings. Rio de Janeiro: Portal ESPM Jornalismo, 1 mar 2023. 

VND. Alegorias e Adereços. Rio de Janeiro, KOPO, 2021; Suporte digital. 2’25”.

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