No vocabulário musical de Ana Flor de Carvalho, a palavra “pranto” não se refere apenas ao choro, embora as lágrimas pelo colapso ambiental possam também regar o chão. Em seu primeiro álbum autoral, Pranto Terra, a poeta, atriz, cantora e compositora amplia o significado da palavra para abarcar também a variante popular do verbo “plantar”.
Nesse jogo entre o culto e o popular, o lamento e a esperança, o tradicional e o moderno, a artista tece as nove faixas de seu primeiro álbum, Pranto Terra, que reverenciam seu legado ancestral como coisa viva, presente e conectada com o futuro. Com temas sérios, quando necessário, mas sem perder o gingado e a malemolência, o disco chega às plataformas nesta quinta-feira (20), com show de lançamento no Sesc Vila Mariana e participação especial de Rodrigo Mancusi.
Filha do mestre quilombola maranhense Tião Carvalho e da pesquisadora paulista Daraína Pregnolatto, Ana Flor cresceu imersa na cultura popular nordestina e rodeada por artista como Toninho Ferragutti, Swami Jr. e Toninho Carrasqueira (que também participa do álbum, assim como Kiko Dinucci). Ao longo da carreira, trabalhou em projetos de educação com jovens da periferia e de agroecologia, cantou com artistas como Tião Carvalho, Ana Maria Carvalho, Lia de Itamaracá, Zeca Baleiro, Mano Chao, e por sete anos, na banda ZafeNate, além de ser membra fundadora da banda Forró do Assaré, formada só por mulheres.
Iniciando uma nova fase, apresenta ao mundo seu primeiro trabalho solo autoral, produzido por Guilherme Kafé e Ivan Gomes, e sobre o qual conversa conosco na entrevista a seguir.
Você vem de uma longa trajetória musical, artística e cultural, em diferentes projetos e com grandes artistas. Esse primeiro álbum autoral sintetiza sua vivência e sua proposta artística?
A minha trajetória musical iniciou junto com a percepção da minha existência neste mundo. Ser artista foi uma decisão profissional muito lúcida e óbvia desde sempre, então todas as influências, experiência e oportunidades foram muito bem aproveitadas. Crescer no meio da cultura popular e vivenciá-la, ver e ouvir de perto essas referências se manifestando me constituíram enquanto artista. Venho gravando esse disco há quase quatro anos. O processo foi longo, desafiador e com muito suor. Agora não sei se consigo sintetizar tudo ainda, pois minhas experiências são muito diversas. É uma pequena porta de entrada para um leque variado de possibilidades, e nove músicas não dão conta de toda a expressão que ainda tenho para compartilhar com o mundo.
Você enaltece muito as suas raízes e seu lugar de origem. Como filha de uma pesquisadora e de um mestre da cultura popular, como essa influência atravessa a sua arte e este trabalho?
Antes de tudo, me atravessa com grande senso de responsabilidade, por ter essa oportunidade de vivenciar de dentro, ter o conhecimento aprofundado sobre nossas raízes e a vontade de trazer a beleza do Brasil e da arte, no meu trabalho, compondo com tantos outros movimentos e influências que fazem parte da minha trajetória.
Qual a proposta do nome do disco, Pranto Terra?
É uma brincadeira com o termo “pranto”. Enaltece a variação popular “prantar”, do verbo plantar, na primeira pessoa, onde se vê a rica possibilidade do paradoxo de “plantar terra”. Quando substantivo, em sua forma normativa, “pranto” fala sobre o sofrimento que a Terra vem atravessando. Em Gaia [uma das faixas do disco] podemos curtir essa metáfora, onde Gaia e Terra, o próprio planeta, são essa mulher explorada.
Como surgiu a parceria com os produtores Guilherme Kafé e Ivan Gomes? Como foi trabalhar com eles?
É uma amizade de longa data e este trabalho se dá desta forma. Todas as pessoas que estão envolvidas nele são parceiras, o que viabiliza tanto financeiramente, pois estão dispostos a somar, quanto energeticamente, pois é muito gostoso trabalhar com amigos. Guilherme Kafé foi a primeira pessoa a quem apresentei um compilado de minhas composições e me incentivou a seguir com esse trabalho solo. Fomos dando vida a essas composições e chamando mais gente para somar. Algumas composições deste álbum, inclusive, são parcerias com Guilherme Kafé.
Já o Ivan Gomes a gente pescou quando resolveu esquematizar e concretizar a gravação, pela admiração que temos pela expertise e excelência em seu trabalho. A gente vive ainda numa sociedade muito machista e misógina, e trabalhar com homens que são aliados na luta contra o patriarcado só poderia ser muito bom, pois me deu muita segurança, muito chão, conforto e liberdade para criar. Fora os momentos de grandeza que é trabalhar em família, que é como nos relacionamos depois de tanto tempo de fruitiva convivência.
Como você decidiu convidar Kiko Dinucci e Toninho Carrasqueira e como foi a participação deles no disco?
Enquanto compunha Ai de mim [outra faixa do disco], já pensava na flauta de Toninho Carrasqueira, um parceiro da minha família desde antes do meu nascimento, então não poderia ser outra pessoa a gravá-la. Kiko Dinucci tem uma reverência com sua forte e responsável pesquisa na música, com uma atenção cuidadosa à cultura popular e detentores desses saberes. Me identifico com seu trabalho quando percebo que ele faz justamente o que venho tentando fazer: uma arte autêntica e não alienada da política e de questões importantes que atravessam nossa sociedade. Trabalhar com eles foi incrível, uma grande aula para todos que estavam envolvidos no processo de gravação. Um presente! O seu trabalho traz um olhar novo para aspectos tradicionais da música brasileira. Como você definiria a sua contribuição para esse legado cultural?
Minha contribuição para o legado da música brasileira vem da interseção entre tradição e reinvenção. Trago elementos das culturas populares, como o bumba meu boi, o tambor de crioula e a capoeira angola, mas os ressignifico em arranjos e narrativas que dialogam com o presente. Meu trabalho valoriza as raízes ancestrais, mas sem fixá-las no passado — ao contrário, busco trazê-las para a superfície, em diálogo com sonoridades contemporâneas. Além disso, minha música carrega um olhar de luta, atravessado pelo antirracismo, pela resistência feminina e pelas questões de classe, ampliando o alcance das vozes que há séculos constroem a identidade musical do Brasil.
Qual, para você, é a mensagem principal do disco?
A mensagem principal do disco é trazer à tona o que está no límen [dito de grosso modo, algo como o limite, ou limiar, a partir do qual um estímulo passa a ser percebido], e, como boa aquariana que sou, gosto muito da ideia de trazer à tona, e isto pode ser feito com humor, leveza e, sim, seriedade, também, sempre que for preciso. Trazer à tona: dores, amores, a questão da exploração que segue sendo o sustento do capitalismo em que estamos todos inseridos.
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