Faz quase 65 anos desde que Ruth Handler criou a boneca mais icônica da história. A Barbie foi uma revolução, sendo mais que um treino para crianças serem mães e donas de casa, vindo com variações de profissões, se tornando um símbolo da cultura pop, ganhando versões caríssimas de colecionador, mas também recebendo críticas por ser um modelo estereotipado de aparência feminina inalcançável.
Eis que em 2023, finalmente o mundo ganha um live-action de Barbie. A produção podia ser apenas uma grande e cara propaganda de brinquedo vazia ou uma comédia romântica bobagenta explorando o sempre secundário Ken. Felizmente, para os fãs da boneca e para os admiradores do bom cinema, “Barbie” entrega mais, bem mais do que se imaginava na mente mais otimista dos admiradores da personagem multifacetada.
Barbie (Margot Robbie) vive uma vida feliz e perfeita em Barbieland, lar de todas as Barbies e suas casas dos sonhos feitas de plástico. Nada de mal acontece e todas as moradoras locais têm a convicção de que suas existências ajudaram a empoderar todas as mulheres do mundo, uma vez que cada Barbie desse universo tem grandes profissões e são ganhadoras do Nobel. Mas pensamentos pessimistas e uma angústia tomam conta da Barbie Estereotipada (a clássica loura) e ela precisará ir ao mundo real conhecer a garota que brinca com ela no mundo de carne e osso para recuperar a perfeição de sua vida (e seu corpo, que agora possui celulite).
Logo na abertura é possível entender o que vem pela frente através das lentes da diretora Greta Gerwig (‘Adoráveis Mulheres’ e ‘Lady Bird’). A canção inicial e as soluções visuais da sequência trazem alta dose de inventividade, mostrando o sarcasmo e a acidez que estarão presente durante todo o filme.
Embora o protagonismo seja da Barbie Estereotipada, todas as personagens aqui são Barbies e são tratadas como tal. Da Barbie ginasta de McKinnon à Barbie Presidente da sempre marcante Issa Rae. Apenas este aceno poderia irritar aqueles mais puristas que esperavam o martelar do ideal de uma protagonista loura magra, mas o próprio nome assumido pela protagonista, brinca com a expectativa do público.
Se Greta Gerwig se especializou em explorar a sensibilidade do espírito feminino em seus longas anteriores, aqui ela o faz com uma leveza ímpar, usando a história de um brinquedo que ganhou diferentes interpretações com o passar do tempo para lhe conferir um verniz contemporâneo, colocando em debate os papéis de gênero e classe e temperando com críticas ácidas o roteiro afiado que não perdoa nem a Mattel, produtora da boneca e nem a Warner e seus executivos, distribuidora do filme.
Os nerds Incels e fãs de filmes supostamente sombrios de super-heróis também podem se sentir atingidos com alguma tiradinha, mas caso se irritem, só prova como o texto está certo. Para alguns pode parecer apenas um exercício moderninho de autocrítica controlada, mas as tiradas são hilariamente sinceras e o texto só funciona maravilhosamente bem porque os atores estão profundamente comprometidos com a proposta da direção.
Margot Robbie surge sacal dentro de um mundo entediante e acerta o timing de humor em uma das primeiras quebras de expectativas mais diretas em que começam as sugestões de que algo vai errado. A atriz passeia confortavelmente entre a estranheza de conhecer um mundo novo, a frivolidade de ser fruto de um mundo de plástico criado para ganhar dinheiro e ser autora de observações intelectuais inesperadas, tudo isso com momentos genuína emoção diante de um universo onde as mulheres definitivamente estão longe de terem seu valor reconhecido.
E se Robbie funciona, tanto em Barbieland quanto no mundo real, Ryan Gosling brilha e nos dá um Ken divertidíssimo, que encontra no patriarcado construído do lado de fora da terra dos brinquedos uma válvula de escape para se distrair de sua dependência emocional da Barbie. O personagem é a encarnação do ridículo que se leva a sério e pensa ser mais do que é, mas tem sua existência atrelada unicamente a aprovação alheia e busca em justificativas superficiais um motivo para seguir sendo quem é, ainda que ser quem é não signifique nada para quem o cerca.
Nenhuma cena em que o Ken de Gosling aparece é desperdiçada, com destaque para suas interações hilárias com o Ken asiático de Simu Liu. Inclusive, é na fragilidade emocional e intelectual dos Kens que reside o grande trunfo de “Barbie”. O filme usa o conflito causado por uma nova ordem para cutucar a ferida de tudo e de todos, inclusive da ausência de mulheres dirigindo empresas que produzem produtos femininos. Embora seja pouco, é mais do que o cinemão tem feito nos últimos anos e camada após camada de piadas certeiras, “Barbie” emociona e faz rir sem perder o ritmo, fazendo até uma coisa rara que é tornar os números musicais uma coisa engraçada e bem-vinda em meio aos acontecimentos. São simplesmente impagáveis as coreografias que envolvem todos os Kens.
Sem medo da galhofa, acertadamente os produtores optaram por efeitos especiais toscos quando se trata da transição de um mundo a outro, evocando a movimentação feita quando uma criança brinca.
E assim, o hype em cima do filme da Barbie se justifica e se supera. Mesmo participações pequenas como de Michael Cera como Allan, um homem que não é um Ken e se identifica mais com as Barbies ou de Midge, uma boneca grávida descontinuada, são pitadas de sarcasmo inteligente e bem-vindo em uma produção que poderia surfar facilmente apenas no nome da icônica marca, mas preferiu tecer comentários sobre a fragilidade do patriarcado, estereótipos de gênero, dependência, idealização, militância imatura e de forma mais sutil, ideação suicida.
“Barbie” é um dos grandes filmes do ano e se a Academia deixar, um concorrente digno ao Oscar.
O filme estreia no Brasil no dia 20 de julho.
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