A capoeira foi criminalizada por muito tempo no Brasil. A arte da dança, do jogo, da ginga era considerada abominável pelos coronéis do Brasil após período escravagista e nesse contexto, uma comunidade preta é comumente hostilizada pelos capangas de Coronel Venâncio (Flávio Rocha), principalmente pelo truculento Noca, vivido pelo sempre bom Irandhir Santos.
O mestre Alípio, líder do ajuntamento de negros é assassinado enquanto seu protetor, Besouro (Ailton Carmo), está distraído em uma roda de capoeira e a partir desse evento a jornada do protagonista rumo à redenção começa. Vaidoso e orgulhoso, Besouro é um herói relutante que ainda não compreende seu papel dentro de protetor dentro da comunidade e isso lhe oferece mais camadas do que se fosse o tradicional herói resoluto.
Estas são as cartas de apresentação de “Besouro”, filme conta a história do lendário capoeirista Besouro Mangangá (1895-1924). A produção estreou nos cinemas em 2009 sob a direção de João Daniel Tikhomiroff e tenta estabelecer uma conversação entre a crescente onda de filme de super-heróis, os clássicos de artes marciais e a mitologia envolvendo os Orixás. A premissa é interessante, mas a execução se mostra irregular.
O arrogante protagonista tenta fugir de seu destino, mas irremediavelmente precisa confrontar o imponente e etéreo Exu, aquele que faz bem a quem o reverencia e mal para quem o subestima. A presença de Sérgio Laurentino como Exu é uma representação respeitosa, mas os efeitos de voz podiam ser mais atenuados. O ator já possui uma voz que caberia bem ao personagem. O recurso lembrou o Xerxes de Rodrigo Santoro no filme “300”.
Para quem gosta apenas da pancadaria, os efeitos especiais práticos não deixam nada a dever aos filmes feitos fora do Brasil. Os confrontos marciais são um show e fica um gostinho de que as cenas de luta coreografadas usando como base a capoeira podiam ter mais espaço no filme. No entanto é possível entender a escolha do diretor em focar nas dúvidas de Besouro quanto a como receber e continuar o legado de luta de seu povo e deixar a vaidade de lado.
Seja por orientação da direção ou inexperiência do ator, Besouro carece um pouquinho mais de carisma para que possamos nos identificar com ele. Sua personalidade namora bastante com a de um anti-herói, mas ainda assim falta a ele pitadas de altruísmo que nos conectam à sua jornada.

(Besouro e Exu)
Jéssica Barbosa se mostra a melhor revelação do filme. Pode-se dizer que é o coração da trama até mais que Besouro. O amor que desperta no protagonista e em outros indivíduos é um gerador de conflito interessante e a atriz segura bem as nuances da personagem. O triângulo amoroso entre Dinorá, Besouro e Quero-Quero (Anderson Santos De Jesus) funciona de forma orgânica, não prejudicando o ritmo, com Dinorá (Jéssica Barbosa) tendo uma das melhores cenas de luta do filme no momento em que coloca sua vingança contra os brancos em prática. Infelizmente, sua trajetória também é um pouco jogada durante a projeção.
As entidades do candomblé são bem representadas até certo ponto e a fotografia valoriza a beleza de suas aparições. A própria materialização dessas figuras míticas reforçam a necessidade da ligação com sua fé ancestral para combater a sociedade herdeira da mentalidade escravocrata existente no Recôncavo baiano dos anos 20. Inclusive, o diretor poderia focar bastante em explorar as camadas das relações entre os negros e os brancos da época e lugar. Reduzir o conflito apenas a um núcleo reduzido de personagens foi um desperdício, visto que a direção optou também por não ter muita ação, o que joga “Besouro” para uma linha narrativa indecisa que acaba não entregando nem o aprofundamento das filosofias do candomblé, nem os conflitos de cunho racial e nem a ação em plena potência possível
Besouro tem esse apelido porque é preto e voa. Para fazer jus ao apelido, as coreografias e efeitos ficaram a cargo de Huen Chiu Ku, mesmo profissional que trabalhou em Kill Bill e O Tigre e o Dragão.
É importante frisar como foi importante ter um filme com elenco protagonista negro em pleno 2009, tratando de assuntos que dizem respeito à comunidade e muitos anos antes da Marvel investir em ‘Pantera Negra’.
“Besouro”, embora indeciso e irregular, é um filme que deveria ser mais visto e reconhecido. Um remake com direção negra e uma coesão narrativa mais firme seria bem-vindo.
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