“Todos os programas de TV misturavam o ‘da Mata’ a uma coisa primitiva ligada ao cabelão”: Falamos com Vanessa da Mata sobre raça, política e claro, música!

por | abril 13, 2023

Vanessa da Mata apareceu para o Brasil no início dos anos 2000 como um furação dentro de uma MPB que buscava encaixar todas as cantoras que apareciam nas prateleiras de “nova Marisa Monte” ou “nova Cássia Eller”. Pois a cantora mato-grossense não só se desvencilhou da necessidade de comparação da imprensa musical, como imprimiu sua assinatura na música brasileira com suas crônicas amorosas, seu cabelo cheio feito coroa de rainha, e se tornou referência para jovens cantoras que surgiram depois.

A cantora acabou de lançar “Vem Doce”, novo álbum que dá continuidade ao que já foi construído em sua carreira, mas sem nunca soar cansativo. Dessa vez, a cantora trouxe nomes como João Gomes e L7nnon para temperar o caldo da MPB pop das composições. “Eu trago o João, cantor do piseiro, mas ele tá junto com meu forrozinho e o L7nnon é rapper, mas vem somar na minha balada romântica, né? Então é mais fácil assim”, conta Vanessa.

A interligação com os dois artistas surgiu por conta da participação do rapper no DVD de João Gomes. O cantor de piseiro já cantava “Amado”, sucesso de Vanessa da Mata e o convite surgiu naturalmente. Segundo da Mata, L7nnon logo ficou à disposição: “Ele falou assim ‘qualquer coisa tô aqui’ e eu falei ‘cara, vamos lá gravar uma música”’, conta descontraída.

Vanessa da Mata fala de amor e conflitos em "Vem doce" - Cultura - Estado de  Minas

Foto: Divulgação

João Gomes, atualmente um dos cantores mais populares do país, reserva uma passagem curiosa com Vanessa da Mata. Segundo ela, Gomes recebeu críticas por sua interpretação e ele foi pedir desculpas à cantora. “Moleque, você tá doido”, respondeu. “ Tem 20 anos, né? Ele já ligou para mãe dele chorando. Muito  querido e muito amoroso”. No fim, a ligação resultou na parceria em “Comentários a Respeito de John”, do cearense Belchior.

“Vem Doce” arrisca mais explicitamente nas questões políticas como nas faixas “Foice” e “Face e Avesso”, servindo de contraponto ao momento em que muitas pessoas se mostram resistentes ao discurso em prol do mínimo de dignidade humana. Para a cantora era inevitável falar sobre o assunto. Segundo Vanessa, “as pessoas precisam ser abordadas e entender que a crueldade das palavras mata muita gente e causa feridas nas pessoas”. 

 As pessoas tem tido ideias que é  fruto de muita ignorância, muita leseira, repetem feito papagaio sem saber o que é uma Lei Rouanet ou qualquer lei, seja para fiscalizar o agronegócio ou as igrejas que não pagam impostos. Não sabem o que é aprovar um projeto

O novo disco chega em um período de transição de governo e busca por políticas que voltem a valorizar o setor cultural, a busca por equidade, o que para a compositora serve como combustível criativo. “A gente foi muito demonizado e tudo que é diferente foi demonizado; as religiões diferentes, tudo vindo do medo de uma galera de ver as pessoas mais pobres crescendo”, desabafa.

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Imagem: Instagram

Sempre com um sorriso na voz ao falar da própria arte, Vanessa revela que sabe que chegou a hora de um novo disco quando “as músicas novas começam ficar o tempo inteiro na cabeça”, gerando a ansiedade por encerrar o ciclo das canções anteriores e começar a contar novas histórias. “Elas começam a pipocar como se fosse uma criança querendo atenção”, explica.

Respeitando os sinais internos que guiam a intuição na canção e na poesia, a compositora não se adequa à urgência de lançamentos do mercado moldado na lógica Tik Tok, o que é bom para um público fiel que a acompanha há mais de 20 anos e também o público novo que chega a cada trabalho procurando algo além de dancinhas de trinta segundos. 

Antenada, Vanessa da Mata tem se identificado com o som de dois novos cantores e compositores que têm procurado espaço na cena, Bruna Black e Jota.pê, ambos integrantes do Duo Àvuà. “O menino tem uma presença muito boa de palco porque também é difícil você cantar bem, compor bem e ainda ter presença no palco. E tem a parceira dele também, a Bruna, que me lembra muito eu quando comecei, a voz, aquele cabelo gigante”, conta.

Não é comum ver Vanessa da Mata sendo exaltada em mídias negras. Apesar da pretitude saltada em seus traços, a cantora parece estar à margem da identificação do público racializado. A história familiar mostra que ela tem mais em comum do que o ouvinte negro imagina. “Tenho um pai branquelo e ele ficava muito ofendido quando eu falava que eu era negra. Era como se eu estivesse renegando ele. ‘Mas eu não tenho os seus olhos, eu não tenho cabelo liso, eu tenho bocão, entendeu? Tenho um bundão! Desculpa, sou preta não adianta”, conta entre risos e diz que o pai acabou aceitando, embora o estigma em cima das características negróides tenha sido motivo de piada mesmo quando o sucesso como cantora surgiu. “Todos os programas de TV misturavam o ‘da Mata’ a uma coisa primitiva ligada ao cabelão, e era no Brasil inteiro”

Um dia, a cantora foi questionada por Lázaro Ramos se as piadas com seu cabelo eram um tipo de preconceito e ela já tinha a resposta na ponta da língua. Para Vanessa, é comum que haja ataques sistemáticos a autoestima negra e ver alguém ostentando cabelo crespo é quase uma ofensa. “Querem  confundir a humildade com subserviência. Subserviente, não!”, dispara.

Lembro de um momento, uma menina preta sozinha e todos os outros num cantinho com os branquelas com os populares da escola e eu fui e fiquei com a menina preta e o meu pai e mãe chegou para mim, dizendo que todo mundo tava com os filhos de não sei quem. Eu falei que ela tava sozinha, aí ele parou e percebeu que ele sempre foi sozinho, entendeu, né? – Vanessa da Mata

Apesar de ter tomado posse com uma interpretação poderosa de “Eu Sou Neguinha”, de Caetano Veloso,  Vanessa parece nem sempre ser lida como a mulher negra que é. Ainda que em suas apresentações passeie pelo palco como uma entidade ancestral, a falta de um discurso direto em suas músicas sobre racialidade faz com que ainda haja certa miopia em relação à sua leitura como artista negra. “Um senhor na Bahia veio um dia após o show, sentou do meu lado com a mulher e disse ‘você não é negra’. Eu respondi que essa é a única certeza que eu tenho. Parece que quer te salvar, né?”, gargalha ao contar. 

Vem Doce” já está disponível nas principais plataformas de áudio.

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